segunda-feira, abril 19, 2010

AMARELAS E MEDROSAS

Dois e-mails ferozes até agora: “Pássaros de material sintético André?! Roceiros! Pinochet de estrebaria! Vaudeville itinerante do crescimento ilusório!” Sim. O negócio foi direto. Foi do jeito que eu gosto.

No segundo deles, eu li: “Meu Deus, aonde foi parar o lirismo desse menino?!”


Os outros e-mails variam entre a concisão reticente, o incentivo formal e um tipo de meiguice completamente desprendida que - parabéns menina! - dispensa qualquer lirismo da minha parte. Foram cinco e-mails, ao todo, desde fevereiro. Muito obrigado. Sinceramente adorei. Adorei, também, essa vontade de ver lirismo nas minhas crônicas manifestada nas duas mensagens que citei. Despertaram-me reflexões profundas que, apesar de terríveis, também não deixam de ter uma pitada de lirismo. Daí, sem mais rodeios, vamos à ferocidade!


É preciso voltar aos anos de 1980 quando eu descobri que as criaturas deste mundo - inclusive eu - são mortais. Todo mundo morre mais cedo ou mais tarde.


Um cachorro que grita no asfalto. Um acará que bóia no aquário. Um canário belga que não canta mais. Eu concordo. A perda deve ser experimentada. Experimentá-la, todos experimentam e parece autopiedade ou fraqueza de carater alguém com trinta e sete anos nas costas utilizá-la para justificar as suas idiossincrasias. Eu concordo. Sim. Em parte, eu concordo. Em parte, eu discordo. Principalmente, para defender aquele direito natural, civilizado e indiscutível que nós todos - da raça humana - temos: a indignação com as nossas decepcionantes descobertas e, em certa altura da vida, a publicação do que sentimos a respeito disso.


Este verdadeiro libelo à minha escrita ranzinza pode até parecer egoista ou, então, arrogante, mas o leitor que considerar dois detalhes a serem expostos encontrará generosidade e desapego no lugar de egoismo e arrogância. O primeiro detalhe diz respeito aos mitos “protetores” que os pais incutem na mente dos filhos.


Para a maioria das crianças, o automóvel desenfreado, a infecção fúngica ou bacteriana e as baixas temperaturas noturnas que assassinam cãezinhos, peixinhos e aves canoras integram um fantasioso e rearranjado pacote de explicações adultas com prazo de validade bastante curto pelo simples fato de que as crianças crescem e mantém um contato direto e intensamente interessado com o ambiente. Sem a lógica que somente as relações de causa e efeito baseadas na experiência real proporcionam, tais explicações não duram mais do que oito ou dez anos dentro das efervescentes cabecinhas em formação.


Vencido este prazo, restam apenas aquele olhar pré-adolescente e alguns arremedos de solução para problemas que, de fato, não têm solução. Empacotadas assim, as explicações adultas correm ao largo das forças do acaso que constróem, efetivamente, a realidade. O acaso, a sorte, o deus-dará. Coisas que assustam! Sim: a contigência é assustadora. Ela não poupa ninguém. Tão assustadora que, de modo inconsciente, através dos anos, o ser humano sempre acaba recorrendo aos mesmos artificiozinhos balsâmicos a fim de estancar o choro e o sofrimento das crianças. Tudo fica resolvido momentaneamente através de misteriosas e impalpáveis vontades externas - a reprodução milenar do mecanismo mitológico de dominação do meio -, que variam de região para região, década para década, crença para crença, enfim, de cultura para cultura. Momentaneamente, a ideia de impotência fica suspensa. Promete-se para o futuro - depois da Primeira Comunhão? do primeiro fio de barba? no Paraíso? -, a recompensa para todo e qualquer medo, tristeza ou dor. Mas que lorota hein!


À medida em que “crescemos”, necessitamos de mais fantasias. Compensar a inutilidade de todo e qualquer esforço efetivo - isto é, derrotar a impotência - é uma expedição falida mesmo antes de se começar a empreendê-la. Sentimento extremo, faz nascer revolucionários, loucos, poetas, romancistas e andarilhos que se quedam impressionados pelos dois únicos caminhos possíveis: enfrentar o monstro ou reproduzir o ciclo da covardia original diante dos filhos, ao redor de uma fogueira esquecida no acúmulo dos anos, enquanto uma tempestade se arma logo atrás do horizonte.


Em relação à morte natural é ainda pior: o poder encantatório daquela misteriosa vontade externa nos arrebata. O que temos a fazer é oferecer a nossa melhor ovelha em sacrifício e... Tudo acertado... Estamos em dia com o enigma da Criação! Trocando em miúdos: o velho mecanismo de culpa, medo, sacrifício e alívio passageiro.


Há personalidades, no entanto, que escolhem o caminho mais difícil: enfrentar o monstro sem anestesias metafísicas. Não obstante a sensibilidade, tais criaturas conseguem separar o mundo real das metáforas que os outros ou ele mesmo contrói. As dele, é preciso dizer, não correspondem apenas a um tipo de explicação do mundo, mas também trazem um tipo ácido e original - tanto melhor se original -, de crítica. Eis que chegamos, finalmente, ao segundo detalhe: oportunidade. Sim. Acrescentemos oportunidade àquele caráter sensível e observador.


Nascer, crescer e viver é um jogo puramente animal de estímulo e resposta entre um Sistema Nervoso Central e determinado meio. Nascer crescer e viver sob estímulos que forneçam o aprendizado de condutas agressivas - a hipocrisia, por exemplo -, “pode” resultar numa pessoa destrutiva - hipócrita, por exemplo. Nascer, crescer e viver sob estímulos que apontem para alternativas à hipocrisia - uma educação que valorize a análise, por exemplo - “pode” resultar numa pessoa reservada e prudente, mas que também deseja ser contrária e explosiva diante do comportamento mesquinho das outras pessoas.


Em outras palavras: o pau pode ou não entortar enquanto cresce.


Pode. Verbo contingente. Muitas variáveis em jogo além da culpa, do medo, do sacrifício e do alívio passageiro. Desenvolvimento e estagnação fazem parte da loteria. Um sorteio à prova de fraudes e permanentemente novo. Seu grande “prêmio”?! Ora. “Pode” ser a mais brutal grosseria ou a mais autodestrutiva sensibilidade.


Por isso, eu uso as metáforas. Chamo meus vizinhos de “roceiros”. Faço crônicas que, guardadas as proporções, contém o suspense e a tensão que precedem cada um dos grandes “descobrimentos” que a vida oferece a uma pessoa. Escrever metáforas é antídoto. Decifrá-las, a meu ver - o papel do leitor -, serve para mimetizar prazeres e decepções em pequena escala.


Em grande escala, temos a vida que leva à morte que leva ao medo, “nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas”. Ah, como Drummond é imenso neste poema “Congresso Internacional do Medo”! “Não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços (...); cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”


A criatura mais inteligente de todas não criou o Universo. Ela transgrediu, descobriu-se ilesa após a transgressão e, por último, “concluiu” o seguinte: se os outros macacos temiam menos a chuva, o vento e os raios após terem oferecido alguma coisa em troca, ele podia tirar vantagem sobre aqueles outros. Como?! Bancando o “intermediário”. Em outras palavras: manipulando o temor alheio. Fiat lux! E assim nasceu o primeiro xamã, o primeiro pajé, o primeiro rabino, o primeiro padre, o primeiro dos primeiros espertalhões da linhagem de um bispo Macedo.


Após o estabelecimento do Homo Sapiens como sedentário e, também, depois da inevitável Revolução Agrícola, este raciocínio, evidentemente, aplica-se a qualquer área de atuação humana: dos políticos aos instrumentistas de Jazz. O segredo é ter tido um momento da mais completa insanidade ou da mais radical falta de escolha e atravessado a chuva em meio às rajadas de vento e sob a fúria sonora e luminosa dos raios. É claro: essa distinção também nasce de se ter vivenciado “o limite” no plano das ideias: o candeeiro do Iluminismo que, através do estudo e da Ciência - acúmulo e registro padronizado do conhecimento -, forma personalidades capazes de intermediar aqueles que ainda se encontram nas trevas da ignorância e aquela suposta e misteriosa fonte de calor, luz e segurança.


Quantos, entre nós, enfrentamos a tempestade antes dos 60 anos? E antes dos 40? Uma pequena parcela da população, eu presumo. E ainda mais num país tão rico em distrações como o nosso. País recreativo. Muita distração festiva e religiosa antes que se caia na real. Infelizmente, somos poucos em proporção. Dificilmente povoaríamos o menor dos estados. Pouquíssimos. Uma minoria decepcionada e fudida. Porém, assim mesmo, tenho meus devaneios. Formaríamos, apesar de tudo e todos, um poderosíssimo grupo de apoio mútuo se, por exemplo, num ensolarado final de semana qualquer, alugássemos o Maracanã ou o Morumbi. Nosso objetivo: chorar pitangas! Gente fraterna. De todo o país. Chorando pitangas no ombro alheio. Gente rara que, dentre outras artes, domina os movimentos necessários para que se encontre a exata e inferior localização do buraco. Gente corajosa numa “Grande Marcha Dos Sensíveis Unidos E Amparados Pelo Ombro Mais Próximo”... Bom! Coisa de lotar um estádio. Não mais do que um estádio colorido e decorado pelos patrocinadores do evento. Não faltaria, tenho certeza, patrocínio de laboratório ou distribuidor farmacêutico! Tranquilizante, sonífero e antidepressivo é o que mais há para preencher a imensa vala comum da existência. Na pior das hipóteses, a Souza Cruz (BAT - Britsh American Tobacco) ou a Companhia de Bebidas das Américas (AmBev) serviria como patrocinador! Traficantes de drogas? Fora de cogitação. Estes ainda não têm CNPJ.


Quando eu tinha oito anos, o meu padrinho passou os seus últimos dias em minha casa. Ele já não conseguia falar. Tinha câncer no esôfago.


A partir daquele ano, eu comecei a remoer a mesma historiazinha quando me deitava: uma crise, uma solução inesperada, um final. Quer saber de uma coisa? Eu nunca tive animaizinhos de estimação antes dos oito anos. Fui direto à verdade... Outra crise, outra solução inesperada, outro final insolúvel e decepcionante. Sim. Muitas vezes, o desfecho saia pior do que acontecia na realidade. Eu dormia sem terminar a história de vez em quando. Anos a fio. Só criei coragem para escrever as minhas infinitas variações sobre o tema quando deixei a faculdade.


Todo ser humano precisa de artifícios para viver. Mesmo as piores metáforas são de grande importância. Elas podem salvar a vida de um homem “por alguns instantes” antes do fim. Quando tudo está perdido, empregamos as piores metáforas já produzidas pelo senso comum. Folhas e flores mortas têm a estação apropriada para existir! Desde que o mundo é mundo tem sido assim: vida pela vida, arrependimento e clichês. Exatamente: clichês poderosos ou que, pelo menos, tornam-se poderosos pouco antes do fim.


O mito - a religião - e a ciência nasceram do medo. Enquanto se vive, ainda longe, aparentemente longe, do fim, a culpa precisa ser combatida mediante o nosso arsenal de metáforas pessoais.


O método? A criatividade. O mergulho em si logo pela manhã em plena padaria do seu Cascaes. Sabe como é: verdadeiros xamãs têm o seu próprio “script”. Eles inventam rituais próprios e, com estes roteiros, tentam diminuir a culpa que sentem por trasgredir e, principalmente, por fingir “a importância do intermediário”. E nada - nada mesmo! - de comprar metáforas alheias! Elas apenas funcionam perto do fim. Utilizá-las indiscriminadamente é coisa de roceiro maniqueista.


Contra o medo, infelizmente, nada funciona. O medo persegue a todos até o fim. Antes mesmo do fim, ele desconcerta o melhor dos artistas. Perto do fim, a pior das metáforas pode parecer uma obra-prima ao lado da má Literatura (ou lirismo!) que se vai formando implacavelmente:


“Eis que, então, ele chega ao Outono da vida.”


O melhor é que a neve caia de uma vez por todas.

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Crônica publicada em abril de 2010 na coluna SURRA DE GRAVATA da página AVASSALADORAS RIO - Todos os direitos reservados a André Ferrer

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