sábado, agosto 28, 2010

TRÊS IDADES DA ALMA DA GENTE


DESCRIÇÃO

Casa, riacho, cisnes. Um gatinho que golpeava rolos de lã.

Para variar, a professora recortou uma revista, emoldurou a imagem com cartolina e pendurou a família no quadro negro. A melhor atividade de uma semana repleta do abominável arme-e-efetue. O negócio mais atraente que eu fazia com letras depois de ter conseguido juntá-las mais ou menos bem chamava-se descrição.

Imagem: O GATO E O NOVELO DE LÃ, obra de Macé Marinho

A descrição da família universal. Pai, filho, mãe, filha. Nunca o “n” antes do “p”. “Usa-se 'm' antes do 'p' e do 'b' menino!” Frases curtas. Frases na ordem direta. Desconhecemos, ainda, o rebuscamento. Sujeito. Predicado. Nome de quem se diz e o quê é dito daquele nome. Exemplo: Vovô é mineiro. A minha mãe é metade espanhola. Titio toca violão e bateria. Uma vida inteira, de fato, para que se retorne a um estilo tão sóbrio e honesto como aquele. Muitos jamais conseguem.

Letra, meia volta, palavra, volta inteira, frase, nó, texto, carreira, tecido. A descrição é o que vem primeiro. As pessoas, os objetos e a natureza eternamente congelados em óleo, aquarela, sais de prata ou grafite sobre o papel. Na descrição há predominância dos verbos de ligação. Movimento nenhum atrapalha a simplicidade. Por exemplo: Vovô morreu cedo. Ele era o papai da mamãe. O papai do meu pai é mineiro. Ele tem um banquinho azul. À tardinha, na janela dos fundos da casa, ele canta “Felicidade foi embora e a saldade...”

Na terceira ou quarta séries, uma descoberta impressionante: quando uma transformação aparece entre duas descrições é hora de o tempo entrar na jogada, temos imagem em movimento, desenho animado, cinema!
 
 
 
NARRAÇÃO

José Domiciano e Noêmia vieram das Minas Gerais na década de 1950. Fizeram escala em Bragança Paulista e São Paulo antes de chegarem ao Norte do Paraná.

Meus avós paternos tinham formado a família nos arredores de Pouso Alegre. João, Maria Imaculada, Maria José e Paulo, meu pai, nasceram numa cidadezinha chamada Borda da Mata, numa região montanhosa onde a Serra da Mantiqueira se faz presente, ditando as características do clima e da bela paisagem. Estiva, perto dali, cidade onde a minha avó Noêmia nasceu, é a maior produtora de morangos do país.

Imagem: aspecto de Borda da Mata, foto de Silvana Araújo

Meu avô José foi delegado de polícia em Borda da Mata. Naquela época, os delegados do interior podiam ser qualquer cidadão nomeado. Chamava-se de “calças-curtas” esse tipo de funcionário. Por quatro ou cinco anos, quando os filhos eram crianças, José Domiciano exerceu esse cargo naquela modesta comunidade. Depois, atraído pelos relatos vindos do Sul, parentes a amigos que haviam se mudado para São Paulo e Paraná transmitiam, a família se mudou.

Em São Paulo e Bragança, José Domiciano trabalhou no comércio de alimentos, frutas e verduras, primeiro, e depois refeições. Ele e a minha avó tocaram resteurantes em Bragança e, depois, no Paraná. O bar e restaurante dos Domiciano, em Bandeirantes, funcionou no cruzamento das atuais Rua Prefeito Moacyr Cartanho e Avenida Comendador Luís Meneghel, no prédio onde depois funcionou a distribuidora de bebidas Brahma da família Cravo.

Como todo bom comerciante vindo de fora, o meu avô gostava de contar histórias. Contava os causos tão próprios do mineiro com um toque adicional de nostalgia dos imigrantes. Lembro-me, por exemplo, de vê-lo na cozinha, sentado num banco azul celeste, ou então na janela da mesma cozinha, que olhava para o quintal da sua casa na atual Avenida Edelina Meneghel Rando. Quando eu nasci, meus pais moravam numa casa no mesmo terreno. Vivi naquele quintal cimentado, sob os olhos do meu avô, até os quatro anos. Ele mostrava o rosto lá em cima. Tinha barba e cabelos completamente grisalhos, dizem, desde os trinta e poucos anos. Ele surgia. Quase sempre cantando Felicidade do Lupicínio Rodrigues. Tinha um jeito de olhar para os fundos do quintal que, anos depois, descobri ser o jeito mineiro de procurar a coerência, a regularidade, a planura que as ondulações e os mil obstáculos do relevo (da vida) proporcionam. Tal descoberta me impressionou tanto, que cheguei a escrever uma crônica sobre a capacidade que os mineiros desenvolvem de enxergar os terrenos planos através das montanhas. A capacidade de “tramontar” as dificuldades que obliteram os sonhos; de acreditar na existência de melhores e mais seguros lugares; de ter coragem e transpor fisicamente a cadeia montanhosa.

Nascido em 1910, o meu avô paterno passou o resto da sua vida em Bandeirantes. Era o Zé da Cabeça Branca. Tinha um bar instalado na frente da sua residência na Edelina.

Não conheci os meus bisavós paternos. Muito natural. A maioria das pessoas apenas conhecem os galhos mais grossos, o tronco e as raízes da sua sua árvore genealógica mediante relatos. A partir dos bisavós, tudo parece nublado, misterioso, mágico.

Do lado materno, aconteceu-me de conhecer duas bisavós e de não conhecer o meu avô espanhol. Foi a minha avó, Maria Benedita, a responsável pela transmissão das histórias que me impressionaram na infância e adolescência. O nome de solteira da minha avó era Maria Benedita Leite Meira. Seu pai, meu bisavô, pertencia a uma rica família paulista, que tinha terras na Região Sul de São Paulo. Na virada dos séculos XIX e XX, muitos proprietários de terras paulistas avançaram através da fronteira paranaense à procura das terras roxas, muito boas para o cultivo do café. Meu bisavô esteve na região de Bandeirantes e Andirá no início do Século XX. Segundo a minha avó, ele caçava no exato local onde hoje se localiza o centro da cidade de Andirá. Manuel Leite Meira faleceu de malária em torno dos quarenta anos de idade. A doença era muito comum nas matas norte-paranaenses.

Com o nome mudado para Maria Benedita Ferrer Palomares, a minha avó teve quatro filhos, Neuza, Claudete, que é a minha mãe, Bernadete e Antônio Carlos. Anos atrás, tinha chegado a Bandeirantes, vinda de Cambará, onde morava na famosa Fazenda Água do Bugre. Ela então conheceu um espanhol, meu avô materno que, segundo a visão da época, “trazia sempre o macacão sujo pelo trabalho”, critério dos mais importantes para que uma moça escolhesse o noivo.

Antônio Ferrer Palomares nasceu em Deifontes, um município da Espanha localizado na província de Granada, comunidade autônoma da Andaluzia. Seus pais, Antônio Ferrer Moreno e Angelina Ferrer Palomares, vieram definitivamente para o Brasil quando ele tinha seis anos de idade. Além dele, nasceram Assunción, ainda na Espanha, Ricardo, Paulo e Elza, no Brasil. Antes de se casar, o meu bisavô trabalhou nos Estados Unidos, Cuba e Brasil onde conheceu Angelina, que tinha vindo da Espanha para São Paulo. Depois do noivado, os dois voltaram para a Europa num tempo em que as noivas espanholas vestiam negro. No dia do casamento, muitas pessoas deixaram suas casas movidas pela curiosidade: queriam ver a noiva que se casaria de branco.

Imagem: Paisagem nevada de Deifontes, Ayuntamiento de Deifontes, Província de Granada, Espanha

O meu bisavô espanhol era serralheiro. Chegou a Bandeirantes com a sua família na década de 1940. Trabalhou na instalação da empresa Açúcar e Álcool Bandeirantes. Foi proprietário de uma oficina de serralheria que, depois de se aposentar, deixou para os filhos. Abriu, então, um comércio de frutas e verduras. A serralheria dos Ferrer Palomares empregou jovens que se tornariam grandes profissionais do ramo. Infelizmente, meu bisavô espanhol faleceu muito antes de que eu pudesse conhecê-lo. Nasci em 1973. Pude, entretanto, conhecer a bisavó Angelina.

Mulher vigorosa e muito disposta com fios e agulhas. Lembro-me de uma temporada que ela passou em casa. Foi antes do meu ingresso na escola. Menino rabiscador. Vivia projetanto e construindo brinquedos com papel velho, tesoura rombuda e qualquer material rejeitado. Fazia brinquedos estranhos naquela época, meio verdadeiros, meio inventados. Aberrações, com certeza, mas que, para mim, eram objetos eficientes. Lembro-me de um deles, uma carrocinha de rodas imaginárias puxada por um cavalinho branco, que não sai da minha memória por causa da hóspede e do grau de dificuldade com a qual se apresentou a consumação do projeto. Ninguém me ajudava. Todos preocupados com a visita. Criei coragem. Nas mãos, uma caixa de fósforos vazia, um cavalinho de plástico e um barbante. A mulher entendeu. Apanhou a caixinha e providenciou dois furos para o barbante. Foi dessa vez que eu aprendi a construir um nó simples. Átomo da indústria têxtil. Com centenas de laçadas assim, bem apertadinhas, a vovó Angelina tecia uma respeitável mantilha andaluz. Passei o dia com a carrocinha nas mãos. Ela tricotou a soma dos nós. O universo, as tramas e os brinquedinhos de rodas imaginárias têm nós como matéria fundamental. Incontáveis laçadas que, no final do dia, originaram a textura esperada.

Imagem: Um dos vários arabescos do Alhambra (Forte Vermelho), Granada, Espanha

A outra bisavó materna, Maria Marcolina de Jesus Leite Meira tinha descendência alemã e portuguesa. Era uma mulher baixinha e franzina, que criou os filhos sozinha depois da morte do bisavô Manuel. Quando a minha mãe tinha compromisso sempre me deixava na casa dela, uma casa simples, de madeira, localizada na atual Rua Prefeito José Mário Junqueira e construída num grande terreno sem calçamento. Apenas um caminho de tijolos cercado de sempre-vivas ligava a porta da sala ao portão. Foi Marcolina que me ensinou a tomar café puro e forte, “desde criança faz muito bem à saúde!”; ficávamos a espera da minha mãe; eu sempre queria colher uma sempre-viva que, para mim, chamava-se “jojóia”, um nome que inventei para aquelas inquietantes e estranhas flores eternas. Marcolina morava com a minha tia-avó Anália, exímia costureira.

Um dos relatos que mais me impressionaram na infância envolve a bisavó Marcolina. Quando jovem, ela cruzava as terras da família sozinha, montada num cavalo, para transportar a comida dos homens. As minhas ideias a respeito de cowboys, cavaleiros vingadores e amazonas de farwest não combinavam com a imagem frágil da minha bisavó pois, raramente, ela se aventurava além da sua “trilha de jojóias”.
 
 
DISSERTAÇÃO

A procura de planuras além das montanhas. O sentimento de não pertencer a “este” lugar. A inexplicável perda de referências não-possuídas. Eis a tônica da minha personalidade que, durante os anos de autodescoberta, intrigou-me por vezes de maneira terrível. Hoje, na idade da dissertação, quando a vida também já se revelou bastante capaz de se tornar obscura, sei que cada uma das minhas percepções passa por esse filtro.

A cidade é bonita. Bonita e a um só tempo feia. Por quê? Ah! Sim. Os porquês e as justificativas dominam a vida na idade da dissertação.

Imagem: canavial em chamas, fonte www.econews.com.br

Um domingo desses, eu acordei cedinho pensando na janela alta do meu avô José; pensei tembém nas manhãs, tardes e noites que vivi ao lado da minha avó Maria. Quantas histórias ela me contou! Sei muito bem agora: todas elas filtradas pelo sentimento e pela vivência de uma pessoa que há muito deixara a descrição, a narração simples e descrevia, narrava e dissertava, sim, julgando, julgando-se e argumentando ao mesmo tempo. Idade avançadíssima de dissertação. Cheguei imediatamente à conclusão de que a minha paixão por escrever – cada vez mais encarada como ofício – nada mais é do que a minha maneira de transpor as montanhas, os oceanos e os anos que me separam de uma ou várias terras originais. Busca passional, mas que precisa se despojar do sentimentalismo para que se transforme em texto coerente, coeso e real. Para que a trama dos causos, a padronagem de Alhambra, o museu dos mosaicos de Granada, enfim, todos aqueles fios unidos pelo balé das agulhas tomem um formato digno de ser chamado de conto, crônica ou ensaio.

Naquele domingo, eu desejei escrever com afinco até a hora do almoço, mas o dia estava lindo. Em Bandeirantes, os melhores dias têm imaginárias manhãs azuis. Você só precisa olhar para o céu e jamais abaixar a cabeça enquanto imagina.

“Vou sair para procurar, aqui mesmo, alguma terra distante”, pensei. Exercer o mistério de uma busca ancestral inacabada para todo o sempre. Além dos extensos canaviais em horizontes incandescentes, as chaminés lançam e relançam uma fumaça leve e pesada para o meio ambiente. Canavieiros também trabalham aos domingos! Ferem os olhos azuis do dia com a fumaça que vem da máquina econômica – única responsável por todo e qualquer movimento local? Por causa do negro fumo, nem toda a água boricada do mundo bastará. Lado negativo. Positivo. Sejamos honestos. A minha vontade é mesmo inimiga de qualquer ufanismo. Preciso anotar a beleza de um rosto verdadeiro e jamais camuflar as profundas marcas deixadas pela varíola.

Logo ali, no alto da Comendador, um cisco incomoda os olhos nos olhos da manhã que jamais terminam em literatura de qualidade, terminam, e não se pode negar, exatamente como a própria manhã: injetados de sangue. Ao longo da tarde, a fração mais densa da fuligem precipita sob a forma de pequenos caracóis de carvão. Negras volutas que, na sua existência minúscula, fazem todos os tipos de peripécias. Invadem os grandes poros da cidade. Imiscuem-se nas fibras da roupa que seca no varal. Causam sinusite, asma brônquica, sangramentos respiratórios e, a médio e longo prazo, cânceres dos mais diversos, inoportunos ou não, eleitoreiros ou não, que, a curtíssimo prazo, oneram o Sistema Único de Saúde.

A procura de planuras além das montanhas. O sentimento de não pertencer a “este” lugar. A misteriosa perda de referências não-possuídas. Eis o motivo da minha irritação criativa. O desafio. O estímulo que me faz enxergar a beleza e o progresso atrás de verdades físicas inquestionáveis. E há tão pouco espaço para esperanças! A idade da dissertação é assim mesmo, cheia de cicatrizes, ressentimentos e vontade de ser honesto uma vez na vida com a alma da gente.



André Luiz Ferrer Domenciano é farmacêutico e escritor. Membro da ALCAB, Academia de Letras Ciências e Artes de Bandeirantes (PR). O texto acima foi escrito para integrar a coletânea "A Saga de Bandeirantes" a ser publicada ainda em 2010. Semanalmente, André publica sua crônica no blogue AVASSALADORAS RIO , no site LENÇÓIS NOTÍCIAS e no site BRASILWIKI. Todos os direitos reservados. VOLTAR PARA ANDRÉ FERRER

3 comentários:

Rafael Caetano (Osasco-SP) disse...

Cara, que belo texto! Acho que o melhor que já li seu. Você conseguiu mesclar à sua agudeza de raciocínio uma certa poesia, o que com certeza é um passo à frente. A densidade da investigação psico-genealógica é elogiável, ainda mais se vertida num texto escorreito como o em questão. Parabéns, e continue. Abraço saudoso, Rafael.

Anônimo disse...

Parabéns André. Suas reminiscências me levaram a viajar por breves instantes (mesmo que o céu não esteja hoje com o azul que você lembrou ser inspirador). Continue assim primo, persevere e deixe que a próxima idade de sua alma o torne ainda mais lúcido, sensível e inspirado. Abraços, Waelson

Pedro Paulo Leite disse...

olá André, de certa forma também fiz parte desta história, fiquei até emocionado poder relembrar os personagens que passaram em nossas vidas,nasci em Bandeirantes e apesar de ter vivido apenas 12 anos nesta cidade, o seu relato me trouxe a mente lembranças inesquecivéis, tomo café forte até hoje, aprendi com a avó Marculina.
É maravilhoso o seu documentário, parabéns e obrigado.

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