O termo liberdade só faz sentido pontualmente na vida de uma pessoa jovem ou de um país jovem. Interpretar e fazer uso indiscriminado de tão abstrato substantivo pode ser perigoso. Trata-se de uma questão delicada até mesmo no que se refere a precisar a idade em que terminam as distorções. Mario Benedetti, prosador e poeta uruguaio, dá uma pista nos versos do poema Quiero creer que estoy volviendo:
todos estamos rotos pero enteros
diezmados por perdones y resabios
un poco más gastados y más sabios
más viejos y sinceros
Toda vez que o feriado da Independência chega, um desses jogos de associação muito particulares leva-me a pensar em sebos, melancolia latino-americana e cinquentonas. A palavra liberdade ressoa dentro de mim. Fico desconfiado; há lugares comuns demais nos discursos do dia 7. Nas ruas e nos palanques, na TV aberta ou fechada, nos bares e salões - enfim, na timbalada moral e cínica que anima a efeméride -, o vocábulo mais pronunciado e festejado é, para mim, um gatilho de recordações e alertas.
Em Santa Catarina, onde estudei Farmácia no final dos 1990, as passagens de ônibus para o Norte do Paraná constituíam um luxo semestral. Eu viajava pouco para casa e, na iminência de um feriadão, procurava distração barata nos sebos e brechós literários de Itajaí e Balneário Camboriú.
Aliás, foi assim que autores como Benedetti, pouco publicados e conhecidos no Brasil - é claro, se comparados a outros latino-americanos como Borges, Márquez e Llosa - entraram na minha vida de estudante. Um verdadeiro tesouro que argentinos, paraguaios e uruguaios enterram anualmente, em pleno Verão, nas prateleiras dos brechós catarinenses.
Em um deles, instalado em Balneário Camboriú, a proprietária puxava conversa e dava palpites. Ela fazia questionamentos e, muitas vezes, extrapolava, tornando-se invasiva. Teimosa, a cinquentona implicava até mesmo com a minha assiduidade.
Nas primeiras visitas, eu fiquei em dúvida se era dona do lugar. A mulher debatia. Ironizava as minhas escolhas. Dava menor importância ao lucro do que ao fato de um rapaz como eu preferir velhos livros à praia ensolarada.
Mesmo no inverno, quando a enseada fica cinzenta e toda a orla abandonada, ela demonstrava ironia e indignação. Jovem combina com ar livre e movimento! Entre agosto e setembro, meses em que o tempo começa a esquentar, a mulher descarregava o sarcasmo: Jovem combina com praia, prancha de surf e... liberdade! Mas foi diferente, posso garantir, na manhã em que descobri Benedetti na prateleira: Geografías, livro de contos e poesias em Espanhol, no original, publicados em 1984 pela Editora Nueva Imagem de Buenos Aires.
A literatura de Mario Benedetti é uma comovente denúncia. Ele mesmo sentiu na pele a marca da sua época; os terríveis acontecimentos políticos que, na segunda metade do Século XX, extirparam direitos em toda a América Latina.
Diante da minha escolha, a mulher ficou quieta. Mera distração? Conhecimento de causa? A cinquentona teria ficado un poco más gastada y más sabia? Nunca descobri.
De qualquer maneira, Geografías de Mario Benedetti me transformou naquele momento. Em plena Avenida Central, sentia-me um pouco mais livre. O peso de ser um jovem apaixonado pela leitura incomodava menos.
André Luiz Ferrer Domenciano é farmacêutico e escritor. Membro da ALCAB, Academia de Letras Ciências e Artes de Bandeirantes (PR). Semanalmente, publica sua crônica no blogue AVASSALADORAS RIO , no site LENÇÓIS NOTÍCIAS e no site BRASILWIKI. Todos os direitos reservados.
terça-feira, setembro 07, 2010
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Um comentário:
Cara, que ótimo texto! E que ótima vivência conta através dele. Me fez lembrar o que me contou sobre o Marcelo Mirisola, e sua intolerância para com os "manezinhos da Ilha" surfistas e sarados. Engraçado mesmo. Tem sempre alguém que nos encara como se estivéssemos fazendo alguma subversão séria, por se interessar por Literatura. Ainda mais quando a pessoa, vendo que vai se mudar de cidade, procura xerocar alguns livros...
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