
Para muitos acadêmicos, acredito, A saga de Bandeirantes nasce como um livro de memórias. Para mim, definitivamente – que não fui testemunha ocular da “arribação” –, é um penoso exercício de remontagem.
Quando encarei o desafio, descobri que pisava em solo movediço. Fazia-se necessária uma espécie de proteção ou mecanismo psicológico. Caso contrário, a minha participação estaria comprometida. Ou, pelo menos – por ordem médica –, eu estaria incapacitado de me apresentar na festa do lançamento.
Sou criterioso. Decidi estudar a jurisprudência do caso antes de iniciar a escrita. Uma legião de paranóias me rodeava.
Escrever memórias é coisa para maduros; para depois dos cinquenta anos; para depois que uma grande parte das armadilhas psicológicas já se apresentou e o indivíduo é aquilo que se costuma chamar, à miúde, de pessoa bem resolvida. Certo? É o quê dizem alguns. E antes dos cinquenta anos? Temeridade! Ora, se a crise dos quarenta não veio ainda – meu caso – ou está prestes a acontecer, nada parece mais perigoso. Na prática, entretanto, escrever memórias com trinta, cinquenta ou noventa anos de idade significa mexer numa fervilhante caixa de abelhas. Antes da temida exposição, é preciso colocar as mãos na colméia, ter resistência para deixá-las bem afundadas por tempo suficiente e retirá-las ainda intactas a fim de realizar o trabalho.
Em primeiro lugar, eu me convenci de que as nebulosas recordações das minhas bisavós maternas bastariam. Do lado paterno, vale dizer, só conheci meus avós. Eu precisaria somente encontrar o tom mais adequado para que tais clarões combinassem com as minhas fontes, digamos, indiretas (ou apud), e com a estrutura que eu escolhesse para o texto. Depois, felizmente, eu me lembrei de que muitos escritores de ficção resvalam no memorialismo. Fazem uma literatura que é um misto de memória e ficção. Preenchem com a criatividade as lacunas de tudo aquilo que é difícil de recordar por inteiro ou que lhes foi contado de maneira fragmentada. Caso, por exemplo, de três grandes escritores brasileiros, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e Carlos Heitor Cony. Este último, aliás, produziu um romance cujo título é bastante ilustrativo, Quase memória.
Gênero difícil. Próximo demais de tudo o quê há de sentimental e traumático na vida de quem escreve. Muitos iniciantes na arte da escrita – por inocência ou falta de assunto – cismam de começar justamente por ele. Enquanto isso, a maioria dos grandes escritores foge do memorialismo. Dizem que ainda não é o momento. Adiam a mais patética das ações que um ser humano cheio de pudores pode realizar em vida: expor a própria intimidade. Ou, quando muito, fazem como Cony, Raquel de Queiroz e José Lins do Rego: melhoram a realidade com a arte. Felizmente, para quase todos esses gigantes da literatura, a morte chega primeiro.
Munido de coragem e algumas frágeis convicções, prossegui. Uma das minhas convicções é de que o texto terá como pano de fundo a minha relação com a escrita. Outra é de que terá um clima de ensaio. Narrativa pura, definitivamente, fora de cogitação. Há dois meses, escrevo e paro, escrevo e paro, numa espécie de ciclo cartático e trevoso. Conhecer as raízes e, sobretudo, o local onde se acham fincadas tem sido difícil para mim. O trecho a seguir, que narra uma passagem da minha infância, bloqueou-me por, pelo menos, duas semanas. Ainda não sei se figurará no texto definitivo.
“O meu bisavô espanhol era serralheiro. Chegou a Bandeirantes com a sua família na década de 1940. Trabalhou na instalação da empresa Açúcar e Álcool Bandeirantes. Foi proprietário de uma oficina de serralheria que, depois de se aposentar, ele deixou para os filhos. Abriu, então, um comércio de frutas e verduras. A serralheria dos Ferrer Palomares empregou jovens que se tornariam grandes profissionais do ramo. Infelizmente, o meu bisavô espanhol faleceu muito antes de que eu pudesse conhecê-lo. Nasci em 1973. Pude, entretanto, conhecer a bisavó Angelina.
“Mulher vigorosa e muito disposta com fios e agulhas. Lembro-me de uma temporada que ela passou em casa. Foi antes do meu ingresso na escola. Menino rabiscador. Vivia projetanto e construindo brinquedos com papel velho, tesoura rombuda e qualquer material rejeitado. Fazia brinquedos estranhos naquela época, meio verdadeiros, meio inventados. Aberrações, com certeza, mas que, para mim, eram objetos eficientes. Lembro-me de um deles, uma carrocinha de rodas imaginárias puxada por um cavalinho branco, que não me sai da memória por causa da hóspede e do grau de dificuldade com que se apresentou a consumação do projeto. Ninguém me ajudava. Todos preocupados com a visita. Criei coragem. Nas mãos, uma caixa de fósforos vazia, um cavalinho de plástico e um barbante. A mulher entendeu. Apanhou a caixinha e providenciou dois furos para o barbante. Foi dessa vez que eu aprendi a construir um nó simples. Átomo da indústria têxtil. Com centenas de laçadas assim, bem apertadinhas, a vovó Angelina tecia uma respeitável mantilha andaluz. Passei o dia com a carrocinha nas mãos. Ela tricotou a soma dos nós. O universo, as tramas e os brinquedinhos de rodas imaginárias têm nós como matéria fundamental. Incontáveis laçadas que, no final do dia, originaram a textura esperada.”

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